CORPO PRESENTE, 2011-ongoing

31 de julho a 14 de setembro de 2014

Galeria Lunara, Usina do Gasômetro, Porto Alegre, Brasil

CORPO TORPORE.

[Sobre Rodriguez e Remor, de alguns Denis e outros Leonardos.

Reflexões sobre o Estado-geral do Corpo Presente.]

Marcio Pizarro Noronha

I

“A essência da mídia visual é o tempo […] as imagens vivem dentro de nós […] nós somos databases viventes de imagens – colecionadores de imagens – e já que as imagens estão dentro de nós, elas não cessam de se transformar e crescer.”

Bill Viola

Quando nos deparamos com um projeto expositivo, a tradição dos estudos da linguagem exige um tratamento adensado para a mídia na qual o objeto se realiza e se revela. Neste caso, a fotografia como suporte, mídia e agenciadora de afetos.

Nesse sentido, a proposição de Corpo Presente já pressupõe tarefa desafiadora. Ambos os artistas, fotógrafos de formação, desativados da radicalidade, que dividem seu tempo de criação com estratégias de produção de exposições, de livros, filmes e seminários, deles e de outros artistas. E nessa constante marcha, acelerada por vezes, resultado do fluxo contínuo da associação entre arte e vida, Corpo Presente, emerge como um lugar idílico, suspenso no tempo. De onde eles fazem valer em seu próprio projeto o pleno princípio da tradutibilidade e das constantes adaptações e rearranjos, impondo à reflexão crítica modos de pensar e operar dos mais diversos.

II

Em se tratando disso, a complexa tarefa de retorno ao Natural e os modos como este pode operar a arte na atualidade parece ser o modo extenso de apreender os diferentes procedimentos e as diferentes atuações e produções destes Corpos Presentes.

O problema entre arte e natureza se encontra desde seus primórdios associado ao tema da mímese e da tradução. Assim, a Tradução nomeia um problema de tradição das operações miméticas em face da Natureza e do Natural, nas suas formas brutas, nas conceituações e nas operações estéticas de invenção de paisagens. O corpo como estado para a integração e a convocação pura e simples do estado de desnudez como condição primeira desta passagem ao reino do natural. Poética arcaizante da fecunda relação do corpo no seu lugar de estado de natureza.

III

Mas não se trata puramente desta tipologia de procura.

O corpo exposto aqui faz funcionar uma sinalização de que é preciso um abandono de si para adensar a relação com a natureza. E disso poder refazer o projeto da paisagem. Paisagem que se funde nos corpos. Promiscuidade. Imiscuir-se silencioso no desértico, no rochoso, no aquoso, no aéreo.

E desta tradução entre arte e corpo, natureza e fotografia, paisagem e nudez, fecundantes nesta proposição artística, surge uma forma particular de traduzir para introduzir e aproximar o espectador, o vidente, o Outro, de uma tarefa.

O que querem ou procuram nossos artistas?

Nestas zonas do natural eles querem ser tradutores e reintroduzirem a Natureza como parte integrante de nossa ordenação de humanos. Eles querem nos conduzir a uma experiência propriamente dita.

Para tanto, eles dão uma atenção toda especial às maneiras como a Natureza reinvade a cena da Arte e fazem do corpo um lugar de condensação para estas mais vastas experiências.

Assim no mundo, como no corpo, e vice-versa.

IV

Traduzir com os corpos a experiência da natureza, vivificando a paisagem, recodificando o estado de natureza numa organização mimética de grande potência. Imagens do mundo reelaboradas nesta procura de uma estética.

Há uma alma do mundo que poderia ser sintetizada nas posições do corpo e em seus deslocamentos de estados?

Há uma possível zona de espelhamento entre natureza e arte? Entre corpos brutos e paisagens constituídas?

Seriam Rodriguez e Remor neopanteístas de um novo tipo de neoplatonismo? Trariam-nos relatos da colheita do olhar nos campos da natureza.

Um desejo de reinstalar a natureza na condição de paradigma para as representações e, mais do que isso, recuperar com sua ação, a precária condição da natureza como origem das todas as artes.

V

Mas as imagens – e a fotografia – não são apenas modos de fixação – e portanto, de memória – para as investigações dos artistas.

Elas fazem o trabalho de uma instalação, que vai em busca da enargéia do mundo e do sujeito, um estado afetivo, pático, gravado nos corpos e no modo como as imagens devem fazer vir à tona, não apenas o seu lugar de registro (lugar comum ao fotográfico, lugar de memória), mas o instante do intervalo entre as viagens e geografias esparramadas, instante de decisão de registro não como documento, mas como pausa.

A energia das pausas contidas em cada uma destas imagens.


Portanto, elas propugnam uma dramaturgia e uma “scinestesia”.

Da dramaturgia provém uma investigação que, para superar as limitações impostas à arte na sua relação direta (menos mediada) com o natural, procura não reconduzir a imagem fotográfica colhida ao lugar comum da representação paisagística da natureza. Não se quer apenas oferecer ao espectador um arranjo do natural nas formas de sua representação, uma transformação histórica das imagens da natureza e a sinalização de sua derrocada face a urbanização. Imagem depoimento, imagem denúncia.

Eles tratam de imagens que são a nós dirigidas como formas condensadas e deslocadas. De um lado, cada imagem condensa uma infinidade de histórias e ações performáticas. Mas de outro, elas se reapresentam como parte integrante de ações para além do instante do seu congelamento. Eles se põem narrativamente, por quadros, em desordem e confusão do tempo.

Não se trata de eleger uma sensação-percepção primordial, mas de multiplicar narrativamente os jogos sensoriais, nascimento de percursos.

Os elementos visuais são efetivamente corporificados.

Os artistas pesquisam algo em torno de um drama “scinestésico”, ou seja, de uma síntese entre a sinestesia e a cinestesia.

Como sinestesia eles propõem um campo na Galeria Lunara, para realizar uma tradução inter-percepções, de como aquilo que um dia foi a experiência do artista se traduz, desafiadoramente, em sentido evocado e disso faz surgir uma nova paisagem, não distanciada, mas de imersão.

Poderia simplesmente nominar: fotografia expandida.

Creio que isto não ocupa toda a preocupação de Rodriguez e Remor.

Para eles, trata-se justamente de uma sensorialização-sensualização-dramatização da integração corpo-natureza, da sua reposição como imagem e da sua revolta como instalação visual, ativando um corpo por extensão, acima, abaixo, para um lado, para o outro, por todos os orifícios, como estado da pele.

Os artistas querem tocar e comover.

VI

São corpos acoplados a pedras e areias.

São corpos como fontes.

Reinventados como próximos da distante natureza.

Invadidos pela natureza eles não aparecem à vista como estranhos a ela.

Invertem a visão camusiana de “O estrangeiro” banhado pelo puro Sol, distorcido e desfocado por seu calor e luz.

Não estão alucinados.

São corpos quase-dormentes.

O entorpecimento e a sonolência destas imagens convocam à carne, à preguiça, a uma delicada luxúria solitária, um orgiástico e silencioso estado do mundo em comunhão.

O entorpecimento é um estado temporal das imagens. As imagens viajantes, colhidas em diferentes geografias, lado a lado, justapostas, sobrepostas, fazem vigorar um princípio de tempo e a vida contida. Estes corpos índices de naturezas são modos de dizer acerca da fixação – fotográfica – e do modo como os sujeitos pressentem a oportunidade para o registro, no interior de um desnudamento e de uma lentidão. Estas figuras revelam-se na lentidão nua das carnes e no seu ato totêmico, devoradas pela paisagem.

VII

Nessa percepção da carnalidade dass imagens, tradução que se faz verdadeiro giro do corpo no espaço, imagens que se afiguram telas de projeção de desejos e espaços que, em sua fragilidade, convocam ao habitar, comungar. O humano se posiciona e cartografa. Ele descreve o mundo, mas se vê dentro dele, e procura um modus operandi para o compartilhamento. Eis outra vez, a enargéia, esta potência que procura convencer por comoção e por empatia. Uma projeção e um páthos reunificados.

Há trabalho do artista e há trabalho do sujeito convocado a experimentar, banhar-se nestas imagens profusas. Há contemplação do artista. Há torpor nos intervalos entre trabalho e contemplação. Eis o estado no qual fui aficcionado nesta narrativa em quadros fotográficos, luz e fumaça. Sou convocado a um estado alterado de consciência que me põe num drama moderadamente letárgico, inércia da moral para ascensão de uma sensibilidade da dormência.

Assim, seremos nós envoltos neste manto de fumaça, uma sensação ou uma provocação que por vezes me faz sentir a presença de um El Greco reanunciada? Seremos nós seres convocados a imergir, submergir, nas projeções multiplicadas em diferentes direções? Nós outros, também seduzidos e identificados por tantos outros Denis e Leonardos.

Marcio Pizarro Noronha (Porto Alegre, RS, 1966) é Doutor em História e Doutor em Antropologia. Psicanalista. Professor e pesquisador no PPGHistória e no curso de Dança FEFD da UFG. Coordena o Grupo de Pesquisa CNPq UFG INTERARTES. Realiza atividades de crítica e curadoria.

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